Denise Accurso
Era o primeiro dia de Ieda. Seu primeiro emprego pós-faculdade, como trainee em Administração. Estava mais do que preparada para esse desafio, sonhara com ele a vida inteira.
A equipe a recebeu bem. Além dela, havia outro trainee, um rapaz, também iniciando nesse dia. A aproximação foi natural.
– Onde você se formou?
– Na PUC. E você?
– Unissinos.
Ele se chamava Marco e era muito simpático. O espírito era colaborativo, o que a surpreendeu. Esperava uma competição feroz. Disse isso a ele.
– Não tem por quê. Se ambos formos bons, eles contratam os dois. Se nenhum de nós for bom, não contratam ninguém. Não temos que competir, mas apenas mostrar nossas qualificações. E trabalhar em equipe é uma delas.
Ele deu uma piscada.
– Sejamos espertos, colega!
Atiraram-se ao trabalho. Ieda procurou aprender tudo sobre a empresa, a estrutura organizacional, cadeias produtivas, enfim, tentou ter uma visão geral, não se limitando apenas à sua área. Marco era um colaborador incrível, inteligente, de pensamento ágil, uma excelente parceria. Com o passar dos dias, foi sabendo mais da vida do colega: vinha de família humilde, morava longe, encarava uma hora e meia de condução para chegar à empresa. Nada disso foi relatado em tom de lamúria ou como um pedido de tratamento especial. Começou a admirar o colega.
Passaram-se semanas e parecia que Marco tinha razão: tudo indicava que ambos seriam efetivados. Ieda reconhecia que se saíra melhor por causa do coleguismo de Marco. Tornaram-se bons amigos.
Faltavam duas semanas para o final do período de experiência quando o supervisor chamou Ieda ao seu escritório. Somente ela. Isso ainda não tinha acontecido.
– Ai, Marco. Chamaram só eu. Estou com um péssimo pressentimento.
– Ué, eu é que devia estar apreensivo. E se ele te chamou pra te dar novas atribuições? Ou a notícia da tua efetivação?
– Mas porque só eu? Isso não faz sentido…
– Vai lá e logo vamos saber.
Foi.
– Ieda, te chamei aqui pra dizer que estamos 99,5% decididos a tornar efetivo teu contrato. Para que atinjas 100%, terás que te desincumbir de uma missão nada agradável. Aliás, de ti depende também a contratação do Marco. Na verdade, depende inteiramente do teu sucesso.
Ela olhou interrogativamente para o supervisor.
– Acho que não compreendi.
– Vou explicar. Em reuniões de equipe e outras ocasiões, percebi que o Marco… Acho que é possível que ele não use desodorante. Ou, se usar, que a marca não seja das melhores. A higiene pessoal dele está deixando a desejar.
Ieda sentiu o rosto esquentar. Já tinha percebido o que lhe estava sendo dito. Sabia que o Marco enfrentava uma longa viagem para chegar ao trabalho.
– Enfim, queremos que você converse com ele e o convença a tomar um banho antes de vir trabalhar. Ele é um ótimo rapaz, competente, comunicativo, mas só poderemos mantê-lo se ele fizer mudanças nesse setor.
Ele levantou. Ieda entendeu que estava encerrada a conversa. Saiu da sala sentindo-se desesperada. Gostava muito de Marco, muito mesmo. Como ia falar no assunto sem magoá-lo ou ofendê-lo? Apoiou a testa na mão espalmada. “Como farei isso, meu Deus?”
Aquela noite dormiu muito mal, cheia de pensamentos conflitantes. Imaginava a situação invertida: como se sentiria? “ora, eu provavelmente iria me sentir grata com a pessoa que me impedisse de perder um bom emprego por uma coisa dessas”. Essa ideia a reconfortava por poucos minutos, até que percebia que estava racionalizando, tentando achar uma desculpa para o quase indesculpável. A noite em claro, a angústia, as reflexões a conduziram a outra percepção: tinha sentimentos pelo colega que extrapolavam a amizade. Esse era mais um complicador da situação.
No outro dia, foi para o trabalho se sentindo péssima, ensaiando a conversa para a hora do almoço, ou depois do expediente, imaginando formas delicadas de dizer o que tinha que dizer.
Marco percebeu logo que havia alguma coisa errada.
- O que houve com você? Tua cara está péssima.
– O que houve? Você quer saber o que houve COMIGO? Houve que me deram a missão mais difícil do planeta, principalmente porque te envolve, Marco!
Com um olhar meio louco, aproximou-se dele e disse:
– ELES QUEREM QUE TU USE DESODORANTE! E sou eu quem tenho que te dizer isso! Eu, que adoro teu cheiro, que conheço tuas batalhas, que só queria te dizer coisas legais…
Correu para o banheiro, em lágrimas.
Ficou lá um bom tempo. Já tinha se controlado, mas sentia vergonha de sair.
Finalmente cruzou aquele umbral. Encontrou um Marco sorridente:
– Ieda, não vou usar desodorante de jeito nenhum! Se tu adoras meu cheiro…