Denise Accurso
Estou com dor. Acho que estou sangrando. Sinto algo quente, viscoso, na ponta dos dedos. Olho para minhas mãos. Nada. Estão limpas. Esfrego os dedos uns contra os outros. A mesma sensação de sujeira viscosa. Ao mesmo tempo sinto frio, só que por dentro, como se tivessem colocado pedras de gelo nas minhas veias.
Tudo causado só por aquela mensagem? Aquelas palavras idiotas têm o poder de alterar minhas sensações fisiológicas? Pois bem, sempre tiveram, não é mesmo? Antes, as sensações eram prazerosas. Faz tempo que não é mais assim.
Não preciso reler o que ele mandou, as palavras estão tatuadas na minha alma: “me incomodei bastante por causa das tuas mensagens. Não responde”. É bem verdade que mandei muitas mensagens essa noite. Não conseguia dormir, os pensamentos não deixavam. E resolvi conversar com ele. Isso costumava ser uma coisa boa. Já notei que a privação do sono me inspira e me deixa mais sincera. Assim, abri meu coração em inúmeras mensagens de voz, falando de tudo um pouco, da frustração de nossa história que não vai a lugar nenhum, dos meus medos, minhas angústias, meus problemas de saúde… Desnudei a alma, sabe? Tudo para ele, só para ele.
Aí ele diz que se incomodou por causa das minhas mensagens. Ou seja, ela ouviu. Mas mandei para o celular dele, porque era pra ele, só pra ele, ninguém mais além dele… Sinto-me nua, mas uma nudez ruim, do tipo de quando alguém entra no banheiro enquanto fazemos cocô. Nada agradável, nada bonito. Esfrego e esfrego as pontas dos dedos, sinto aquilo grudento.
Esforço-me para lembrar o que falei exatamente ontem à noite. Não consigo. Enquanto tento, meu cérebro, esse descontrolado, abre um arquivo não requisitado. Uma conversa da Naiara num dos nossos cafés só de “meninas”. A Naiara ficou separada do marido por quase dez anos, depois voltaram. Ele tinha se apaixonado por outra e foi viver esse amor. Naiara esperou. Tinha certeza do retorno. “São os filhos, a casa, a questão financeira. Ele não aguentou. Eu sabia. Pior é que a outra ficou um ano incomodando, ligando, mandando mensagem”.
A realidade me esbofeteou. Eu sou a outra incomodando. EU! Eu, nesse papel ridículo, folhetinesco… Posso ver o revirar dos olhos da Naiara e transpassá-los para… para ela.
Devia ser uma coisa bonita. Um amor de juventude revivido por gente mais velha. Romântico. Erótico. Não rasteiro, vulgar. Não era para ser um caso. Coisa mais clichê, meu Deus do céu. Eu que odeio pertencer à manada. Sou a outra, o pior tipo de outra: a outra incomodativa.
Lembro das queixas dele, de se sentir invisível, de viver num casamento assexuado por longos anos, de ser explorado financeiramente, de ser pouco respeitado, de ser ignorado. De seu aniversário sozinho, sem almoço, sem companhia, sem parabéns, sem nada. Lembro que chorei tanto imaginando esse abandono, toda essa crueldade com alguém que divide contigo a casa, a vida, que é o pai dos teus filhos. Senti tanta raiva dessa mulher ruim.
Achei, dentro de mim, uma chama que dizia: sim, eu serei tudo o que ele merece. Eu darei a ele tudo o que essa pessoa má negou por tanto tempo. Sou eu a resposta, a felicidade desse homem bom, generoso, que merece sempre o melhor. Estava tomada por uma sensação de justa bondade, de amor generoso. Senti que iria compensar todo esse sofrimento imerecido.
E tentei. Nossa, como tentei. Mas é muito difícil amar quem não quer Amor.
Passo os dedos com força na roupa, tentando eliminar essa sensação melequenta. Não consigo. Vem um ameaço de lágrimas, respiro fundo, não vou chorar. Nem hoje. Nem nunca mais.
Estou curada. Vou lavar as mãos.