Denise Accurso
Eu não sei definir o que eu sentia. O que tem de mais parecido é fome. Uma espécie de fome cerebral, sentimental, sensual, táctil. Algo assim. Eu simplesmente precisava dela e sem ela a dor era grande demais. Imagina estar morrendo de fome e saber que aquela comida perfeita, deliciosa, ideal pra te saciar está logo ali, pertinho, mas tem alguém que não quer que tu te sacie. Agora multiplica essa dor de fome por mil, mais ou menos isso. É assim.
Muita gente me dizia pra eu desistir e sair dessa, que o mundo está cheio de mulheres, que ela nem é tudo isso. Eu tentei. Até andei saindo com outras. Nada adiantou.
E depois… Por que ela não iria me querer? Eu só queria ficar com ela. Eu seria fiel. Eu lhe daria sempre os melhores presentes, a trataria bem, a mimaria à exaustão. Ela só precisaria ficar comigo e não sair de perto de mim. Não dar bola pra mais ninguém, retribuir minha dedicação. É só o que queria, o que quero, a justa retribuição. Não tenho esse direito? Se dou alguma coisa, não mereço receber de volta?
Mas ela não, ah, ela não queria saber, por mais que eu explicasse, por mais que eu tentasse. Ao contrário, parecia que quanto mais eu tentava fazer ela entender o tanto que ela era necessária, vital pra mm, o quanto era impossível eu conseguir viver sem ela, ou com ela mas cheio de dúvidas e ciúmes, enfim, quanto mais eu era sincero, mais ela parecia querer fugir de mim.
Começou ela me bloqueando no wats, no Face, no insta… Passei a mandar SMS até descobrir que ela tinha me bloqueado no telefone também. As mensagens não entravam, nem os recados na caixa postal. Passei a ligar de número privado, no começo ela atendia e desligava na minha cara logo que eu me identificava, depois parou de atender. Comprei um telefone pré-pago pra falar com ela e descobri que ela havia trocado o número!
Comecei a rondar a casa dela, a falar com as amigas, os colegas de trabalho, os parentes. Todo mundo, no começo, simpatizava comigo, tentava me ajudar. Aí, acredito que ela envenenava essas pessoas contra mim e elas passaram a me evitar. Algumas me bloquearam também.
Não tive escolha, precisei largar meu emprego pra poder segui-la vinte e quatro horas por dia. Não havia outra forma, ela fechava todas as portas! Deve ser a única mulher a resistir dessa forma ao verdadeiro amor. Falei com ela algumas vezes, e ela foi insensível, impiedosa, até mesmo grossa. Me chamou de coisas horríveis, fez acusações falsas, pediu que eu a deixasse em paz. De que forma, se ela tinha me tirado a paz? Eu é que precisava de paz, de serenidade, de tudo aquilo que só ela podia me proporcionar.
Fui chamado no fórum. Lá me disseram que, se eu continuasse a perseguir minha felicidade, poderia ser preso! Olha o absurdo da situação! Um homem sincero e apaixonado agora é ameaçado de prisão. Por isso as coisas estão como estão, ao invés de perseguirem bandidos, vêm tentar me intimidar, tentar me fazer desistir. Não sou homem de desistir, principalmente quando sei que estou certo. Passei a tomar mais cuidado. Comprei umas roupas bem diferentes do meu normal, raspei a cabeça e a barba, comecei a usar uns óculos bem grandes, tudo pra não ser facilmente reconhecido.
Por um bom tempo, ver minha amada assim, à distância, disfarçou minha ânsia, mais ou menos como um cafezinho faz quando a gente está morrendo de fome. Mas ela estava ali, e depois de um tempo a dor tomava conta de tudo. Minha vida era ela, eu só vivia pra ela, saber o que fazia, onde ia, com quem…
Ontem, porém, aconteceu o inconcebível, o inimaginável. Ela saiu do serviço na hora de sempre. Eu estava lá, na padaria em frente, com um lanche já pago pra poder ir atrás dela sem perder tempo. Foi o que fiz.
Ela parou na entrada da Galeria Chaves. Eu fiquei numa banca de frutas,observando. Chegou… um cara! Um sujeito que não conhecia. Deu um beijo na bochecha dela. E a desgraçada deixou!
Achei que iria morrer ali mesmo, com um cacho de banana na mão. Mas não morri. Reagi. Fui atrás dos dois, subindo pela escada rolante de dois em dois degraus, até que os alcancei. Peguei a traidora pelo braço.
– Ai! Que é isso?
Depois de uns segundos ela me reconheceu.
– Samuel! Ficou louco de vez? Larga meu braço agora! Vou chamar a polícia.
– Temos que conversar.
O sujeito que estava com ela parecia confuso.
– O que está acontecendo, Marília? Quem é esse cara?
– Um ex-namorado meu, um louco, um marginal que não larga do meu pé! Havia fúria em sua voz e em seus olhos.
– Larga o braço dela, cara.
Eu não larguei. Apertei ainda mais e com a outra mão levantei a camisa, mostrando a ele que estava armado.
– Isso é entre ela e eu, cara. Vaza!
O “herói” saiu rapidamente.
Saímos da galeria e entrei num táxi. Ela começou a gritar e se debater. Expliquei ao taxista:
– É minha mulher, tivemos uma briguinha.
– MENTIRA! Ele está me sequestrando! Chama a polícia!
Saquei minha arma e apontei pra cabeça dela. O taxista parecia apavorado.
– Agora dirige. Dirige ou acabo com ela e contigo.
Chegamos em casa. Paguei o táxi. Não sou bandido, sou um homem lutando pelo que lhe pertence. Isso é muito diferente. Não roubo, não cometo crimes. Sou gente de bem. Por isso o que ela faz comigo é tão errado.
Entramos. Eu já tinha imaginado que isso poderia acontecer um dia e tinha vedado com tábuas as janelas da minha casa. Na verdade, moro em uma peça com banheiro, mas tudo limpo, confortável. Sou um cara caprichoso.
Sentei ela numa cadeira e a amarrei, pelo bem dela. Ela não parava de se debater, de tentar fugir, e nós tínhamos muito que conversar. Ela berrava, urrava, mas eu tentava não escutar. Sabia que uma hora ela ia cansar e me ouvir.
Foi quando ouvi as sirenes. Alguém tinha avisado a polícia. Mas que merda! Nunca vou ter paz pra resolver isso? Começam a dizer que a casa está cercada, que eu libere a refém. Meu telefone toca. Atendi. Expliquei ao policial que estou armado mas que não vou machucar ninguém, que só preciso conversar com a Marília e resolver esse mal-entendido.
Como eu tinha imaginado, ela cansara. Agora chorava baixinho e pedia pra eu deixar ela ir embora.
– Marília, tu ainda não entendeu? Eu te amo! Teu lugar é aqui, comigo. Tu está vivendo errado assim, longe do único cara que te ama de verdade, que te valoriza, que faz tudo por ti.
Ela parou de chorar. Ergueu a cabeça e me encarou. Um olhar que me congelou. Um olhar cheio de… ódio!
– Seu louco, seu doente, em que universo tu acha que eu poderia ficar contigo? Sequestrador, bandido, tarado, louco, louco, loooooooouco!
Ela respirou fundo e disse, numa voz mais calma.
– Entende de uma vez por todas, Samuel. Nunca, de maneira nenhuma, eu vou ficar contigo. A coisa de que mais me arrependo na vida é ter te dado bola um dia! O que eu sinto por ti é um asco tão grande que dá até vontade de vomitar. Prefiro morrer mil vezes a passar um minuto contigo!
Havia uma sinceridade fria naquela voz. Eu a conhecia bem. Vi que ela falava a verdade. Não tive qualquer escolha: fiz a vontade dela. Atirei naquela cabeça que eu tanto adorava…
Começaram a arrombar a porta. Não tenho mais motivos pra viver. Atirei na minha cabeça.