Denise Accurso
Quem faz a ligação
Ele olhava para o celular em suas mãos. Gostaria de ser forte o suficiente e deixar aquilo de lado. Mas não podia. Era o último, frágil elo a se manter. Não podia renunciar voluntariamente.
Imaginava como seu gesto seria interpretado do outro lado. Receava haver a confusão com algum tipo de “stalker”, embora certamente não fosse o caso. Era uma tentativa desesperada de existir. De reverter esse processo de desaparição, de imaterialidade. Queria existir, ainda que na lembrança. Queria que o telefone tocasse e, do outro lado da linha, houvesse o reconhecimento. Recusava sua desintegração, sua partição em átomos e moléculas não visíveis, imperceptíveis. Achava que isso era pior que a morte. Na morte, o falecido é pranteado e lembrado, seus erros são desculpados, suas qualidades exaltadas. Nesse processo de desaparecimento que vinha sofrendo, tornava-se nada. Apenas nada, sem defeito nem qualidade, sem relevância, sem nome, sem sentido. Sem pranto. Sem riso.
Então, ele ligava porque queria existir.
Ligou. A chamada foi imediatamente rejeitada. Seu coração festejou, comemorou o reconhecimento: sabe que sou eu, mesmo o número não aparecendo. Sabe que sou eu, por isso rejeitou a chamada na hora! Bem diferente das vezes em que o telefone tocou, tocou, até cair na caixa postal. Se a ligação foi rejeitada, é porque sabe quem está ligando.
Assim, soube existir para quem estava do outro lado da linha.
Isso teria que bastar, por enquanto. Sorriu.
Quem recebe a ligação
O celular tocou mais uma vez. Na tela estava escrito “número particular”. Como vinha acontecendo há dias, várias vezes. Sabia quem era. Sabia que era ele.
Há apenas um ano, teria atendido alegremente, pois conversavam muito, constantemente. Todos os assuntos, toda a sorte de confidência, fofoca, piadas, problemas, soluções, tudo. Tudo! A mais completa intimidade. Nunca foi tão feliz antes.
O problema é que era casado, e sua mulher, ao descobrir aquela constância, começou a se sentir traída. Pouco importou não haver a tal de conjunção carnal. Mais importante que parte do corpo de um dentro do corpo do outro, mais importante que o compartilhamento de orgasmos, era aquela intimidade monstruosa. Ofensiva, no entender de sua esposa.
Em seguida seus filhos foram tragados nesse vórtice de ciúme/traição/intimidade proibida. Aparentemente, o casamento veda a intimidade com outros. Enfim, a consciência do pecado transmutou toda a sacralidade daquela relação única. Os filhos opunham-se, criticavam duramente.
Decidiu encerrar esse capítulo de suas vidas. Primeiro, tentou convencer o outro, que não se conformou. Ofereceu-se para esclarecer a situação, explicando tudo à sua família. Invectivou contra o egoísmo dessas pessoas que não compreendiam seu entrelaçamento. Implorou pela continuidade.
A insistência teve efeito contrário, fez com que se encolhesse, se encaramujasse. Julgou que, para salvar a família, seria necessário o sacrifício daquela outra relação. E parou de responder. Parou de atender. Bloqueou aquele contato. Foi difícil.
Já havia deixado de atender vezes sem conta em tantos outros dias, depois que descobrira quem era por trás das ligações não identificadas. Mas a insistência estava maior que de costume. A angústia, a dor eram quase palpáveis a cada toque do telefone. Sabia que tinha o poder de minimizar a dor de quem lhe ligava. Desejou fazer isso. Então, quando o telefone tocou mais uma vez, rejeitou a chamada antes do segundo toque. Sorriu.