Denise Accurso
Estou me sentindo meio cansada. Sei que a intenção da Lili é boa, não me arrependo de estar aqui, mas tudo é meio caótico. Os cães latem sem parar, e por mais que o seu Rui e a Lili me digam que são inofensivos, não consigo evitar me encolher um pouco. É tanto barulho. Claro que admiro o trabalho do seu Rui, recolhendo esses bichos e cuidando quase sem ajuda. Pretendo mesmo deixar um donativo generoso para ajudar com as despesas. Mas esse envolvimento direto… Não sei se foi uma boa ideia. Acho que não volto.
Amanhece o dia e saio logo da cama. Afinal, tenho minha quimio às 10 horas e não pretendo me atrasar, mas tenho que fazer tudo o que preciso antes, porque depois não presto pra mais nada. Na minha cabeça ainda ressoam aqueles latidos de ontem. E os cheiros. E aquelas caras ávidas, uns empurrando os outros pra chegarem perto da gente, como se fôssemos popstars e não duas coroas sem muito que fazer.
As primeiras vinte e quatro horas pós quimio são as piores pra mim. Sei que cada organismo reage de um jeito. Eu fico péssima e depois, no dia seguinte, vou melhorando. Passei a noite pensando nos cachorros e na fome de afeto que demonstravam.
Acordei tarde e liguei pra Lili.
– Oi.
– Rose, tá tudo bem? Como foi ontem?
– Aquilo de sempre, agora estou melhor. Sabes que não parei de pensar no abrigo? Não saiu da minha cabeça.
– Estranho, achei que tu não tinhas gostado.
– Quer saber? Eu acho que não gostei, mas mesmo assim queria voltar lá. Tu podes me levar?
– Hoje não dá, amiga. Posso ir depois de amanhã.
– Tá. Depois de amanhã então.
– Beijo.
Desligo o telefone e vou mexendo o corpo devagar, alongando o pescoço. Dessa vez tem muito mais cabelo no meu travesseiro. Decido que não vou esperar mais. Chamo um Uber.
A cara do seu Rui abrindo o portão é uma espécie de ponto de interrogação. Ele está muito admirado de me ver ali.
– Ué, guria! Tu por aqui de novo? Cadê a dona Liliane?
– Não pode vir.
– Eu achei que tu tinhas vindo só pra fazer companhia pra ela. Que tu não tinhas gostado da experiência. Tu estavas com cara de quem ia passar mal.
– Nada a ver, seu Rui. Até estou pensando em adotar um cachorrinho.
A mentira saiu sozinha e me deixou estarrecida. De onde eu inventei isso? Não devia explicação nenhuma pra ninguém.
Seu Rui parou de caminhar, pasmo.
– Tem certeza? Achei que tu estava com medo, incomodada.
– Nada a ver, seu Rui – repito a fórmula. Eu ando com uns probleminhas de saúde e anteontem estava meio mal. Até por isso quis voltar hoje, que estou melhor.
Entramos no pátio enorme onde estão os canis. Como anteontem, eles estão soltos e a impressão é de que somos milhos e eles, galinhas. Todos correm em desabalada carreira em nossa direção.
Tento assumir meu papel de pretendente a adotante, agindo como imagino que agiria uma pessoa nessa situação. Tento identificar os bichos, coisa que não fiz da outra vez, e faço perguntas. Seu Rui parece saber tudo sobre cada um dos mais de noventa cães do seu abrigo.
Arrisco tocar em alguns deles. Sinto as diferentes pelagens, desde curtos e duros como escova de limpeza até macio e suave como cabelo de criança. Eles arfam, voltam seus olhares pra mim, as línguas para fora, os olhos vidrados. Mais uma vez vejo aqueles empurrões, todos tentando se aproximar. Dou uns passos, eles me seguem. Seu Rui, que tinha me deixado sozinha, volta e me dá um saquinho.
– São biscoitos.
Olho pra ele desamparada. A última coisa que penso é em comer.
– Obrigada, seu Rui, mas não estou mesmo com fome.
Ele ri.
– Biscoitos de cachorro. Só não larga o pacote. Pega um e dá pra um deles. Assim, ó.
Ele pega o biscoito e se dirige para um cachorro cor de envelope pardo com um preto em volta da boca que até parece batom. Os outros o olham. Ele aproxima a mão da boca do escolhido que, delicadamente, pega o biscoito.
Estou morta de medo. Jamais vou conseguir fazer aquilo. Provavelmente vou perder um dedo.
Seu Rui está se afastando, seguido por vários cães. Olho em volta e escolho um peludo, pequeno, cor de casca de ovo. Olho pra ele e ele abana o rabo. Chego perto, pego o biscoito e ele o pega da minha mão! Caio na risada, não parece possível que EU fiz isso.
Estou tremendo. Repito a operação com outros. Incrível. Ao me despedir, elogio a disciplina dos bichinhos.
– E só ensinar com carinho. Eles sabem quem manda. E que tem comida suficiente pra todos.
Hoje vou de novo com a Lili. Conto a ela que voltei lá de Uber. Conto que fiquei sem graça de voltar sem motivo e que inventei que queria adotar um cão. Conto do biscoito na boca. Conto que já identifico alguns cães e que lhes botei apelidos: batom preto, casca de ovo, pata suja, cara de pidão. Ela morre de rir.
Seu Rui pergunta se me interessei por algum em especial. Aponto vários e digo que sou meio lenta pra decidir essas coisas. Enfim, saio distribuindo e recebendo carinho desses novos amigos que achei.
Amanhã é dia de quimio de novo! Decido voltar ao abrigo. Antes, passo numa pet-shop e compro petiscos pra levar. Sei que vou passar um dia ótimo. Também sei que vou adotar pelo menos um daqueles seres maravilhosos!