Noite de Natal diferente


Denise Accurso


Dona Júlia está com pressa de voltar pra casa. A cidade está agitada neste dia vinte e quatro de dezembro, mas logo tudo deve se acalmar, com as pessoas chegando a seus destinos para passar a meia-noite. Ela terminou de fazer algumas compras no supermercado. Não adquiriu nada de especial, já que, nos últimos anos, tem passado a noite de Natal como qualquer outra, vendo televisão e deitando antes das onze.

Caminha pela calçada quando ouve um estrondo. Olha pra trás. Uma moto está quase dividida ao meio, entre um poste e uma caminhonete. Não vê seu ocupante. Percebe um objeto vir quicando pela calçada e parar a seus pés, como se fosse uma pedra. Abaixa-se e, ato reflexo, o recolhe. Está quente.

É um telefone celular.

Dona Júlia não tem telefone celular. Dispõe de uma linha fixa em casa, que usa cada vez menos. Seus poucos parentes ainda vivos – um irmão, dois sobrinhos – vivem longe e não costumam manter contato. Mantém aquela linha por uma questão de segurança, teme ser acometida de algum mal e não ter meios de pedir socorro.

Aquele aparelho em suas mãos, então, é um objeto que não lhe é familiar. Gira-o, examinando-o. Parece estar inteiro, com algumas marcas das batidas na calçada. Coloca-o na bolsa. Não tem certeza se agiu bem ao recolhê-lo. De qualquer forma, resolve procurar as autoridades no dia seguinte e devolvê-lo. Deixa-o na mesinha da entrada, ao lado do seu telefone.

Segue-se a rotina habitual: jantar, louça, novela. Dona Júlia deita e dorme como sempre. Mas é acordada por uma música insistente e repetitiva. O tal telefone está tocando. Ela levanta, sonolenta, pega o aparelho. Coloca os óculos e lê “atender” na tela. Atende.

- Alô?

- Oi! Você está com meu celular! Quem é você? Porque roubou meu telefone?

- Não roubei coisa nenhuma - ele caiu nos meus pés na rua, acho que por causa do acidente de moto. Pretendo entregá-lo amanhã na delegacia. Quem é VOCÊ, pra dizer que roubei alguma coisa?

- Meu nome é Michele. Eu que estava na moto. Agora estou aqui, no hospital, sem meu telefone, sem conseguir falar com ninguém… Devo estar muito machucada, porque pergunto para o médico quando vou embora e ele não diz nada.

- Você está falando comigo,não está? Não deve estar assim tão mal. Vai descansar. Não se preocupe, amanhã dou um jeito e devolvo seu celular. Em que hospital você está?

- Não sei… Acordei agora, falei com o médico, ele saiu sem me responder. Quando ele voltar pergunto de novo. A senhora pode me dizer que horas são?

Dona Júlia espia o relógio da parede da cozinha.

- Quase meia noite.

Do outro lado da linha, percebe sons de choro.

- O que foi, menina? Está chorando?

- É que… Nunca tinha ficado sozinha na noite de Natal.

- Você não está sozinha, menina. Está num hospital cheio de gente!

- Mas não tem ninguém aqui agora… Me deixaram sozinh

Dona Júlia escuta agora o som do pranto da moça.

- Olha só, essa é uma noite movimentada, o pessoal do hospital está bem ocupado, não chora assim. Eu já passei muitas noites de Natal sozinha, dessa vez vou passar com você. Vamos, vamos, para de chorar e me conta com quem você ia passar seu Natal.

- Com meus pais… Depois ia pra casa do meu namorado…

A resposta vem entre fungadas, mas o choro diminuiu.

- Então, daqui a pouco seus pais ou seu namorado estarão aí com você. Já devem estar no hospital te procurando, lidando com a burocracia. Você precisa ficar calma, assim, quando eles chegarem, verão que você está bem. Sua família costuma fazer ceia de Natal?

- Mais ou menos. Sempre tem peru, mas ninguém espera a meia-noite.

- Ah! No meu tempo de moça, todo mundo esperava a meia-noite. Minha mãe e minhas tias arrumavam uma mesa linda, com porcelanas e cristais, talheres de prata, guardanapos de linho. E as comidas, todas maravilhosas! O peru era o centro das atenções, mas tinha sempre muito mais. E muitas sobremesas. Nós nos arrumávamos, enrolávamos o cabelo, usávamos roupas especiais para a ocasião. Aquele tempo é que era bom!

E assim ficaram as duas, conversando, Dona Júlia com a sensação de estar cumprindo um dever de caridade, distraindo a jovem de sua situação, mas gostando também de contar velhas histórias, nas quais nunca mais tinha pensado.

Passou-se muito tempo, até que escutou um zumbido e o telefone emudeceu. Olhou para ele, estava todo apagado. Apertou alguns botões: nada.

Conversaram tanto e Dona Júlia não sabia o sobrenome da moça nem em que hospital ela estava. Não havia como ligar para ela.


No dia seguinte, pela primeira vez em muitos anos, acorda tarde. Sente uma alegria inusitada, uma sensação boa de propósito, de utilidade. Sua rotina matinal é menos mecânica, sua toalete, mais caprichada. Estã ansiosa para conhecer a moça pessoalmente, dar-lhe um abraço, desejar-lhe um feliz Natal, uma vida feliz. Seus ferimentos não deviam ser tão graves, ou ela não teria ficado tanto tempo conversando ao telefone.

Caminha até a delegacia do bairro, que está quase vazia. Há apenas um atendente com ar sonolento. Ela se dirige a ele, explica que testemunhou o acidente de moto da véspera e, num ato reflexo, recolheu aquele celular caído a seus pés. Que sabe que o telefone pertence à moça que conduzia a moto, Michele. Diz que quer entregar o aparelho pessoalmente, pergunta em que hospital ela está.

O atendente parece não saber de nada. Consulta o sistema, dá alguns telefonemas e depois orienta:

- A senhora deve deixar o celular aqui, comigo, vou lhe dar um recibo. Precisamos confirmar se é mesmo o da vítima.

Ela hesita, gagueja um pouco:

- Mas, mas… Eu queria entregar pessoalmente… Ela me ligou, prometi que levava hoje de manhã…

- Impossível, minha senhora. Infelizmente, a condutora daquela moto não sobreviveu. Morreu na hora, é o que consta aqui no sistema.

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Denise Accurso

E-mail: deaccurso@gmail.com

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