Olhos verdes


Denise Accurso

– Pessoal. Esse é o Paulo, meu namorado.
Parecia meio ridícula aquela frase na minha boca cinquentona. Mas como poderia apresentá-lo senão assim? Meu amante? Meu ficante? Meu companheiro? Não sei. Tampouco sei o que Paulo acha dessa qualificação. Pelo sorriso largo, simpático, não está vendo nada de errado.
Não o apresento a cada um de meus ex-colegas de segundo grau. São muitos, alguns acompanhados de pessoas que não conheço ou não lembro que conheço, então deixo assim. Sentamo-nos.
Incrível como as antigas panelinhas se desmancharam. Os ricos da aula hoje não são mais ricos, nem os pobres da aula são pobres. Parece que o decorrer dos anos teve um efeito socializante nesse grupo, todos estão mais ou menos no mesmo patamar econômico-cultural.
Eu já tinha revisto a turma ano passado, também entre o Natal e o Ano-Novo. Daquela vez, ainda era casada e vim com meu marido, obviamente. A situação faz eu me sentir desconfortável: embora tenha ficado casada por quase trinta anos, para esse pessoal parece que desfilo com um homem por ano. No nosso tempo de juventude,talvez me chamassem de “galinha”. Como será que chamam, hoje em dia, essas mocas um pouco mais, digamos, namoradeiras? Não que eu tenha sido uma delas. Aliás, nem se eu quisesse… Minha família, ultra-católica e conservadora, jamais permitiria. Casei virgem, não exatamente por opção, mas por medo.
Até hoje não sei como tive coragem de pedir a separação. Foi preciso mais um ano e muito encorajamento dos filhos até eu aceitar sair com outro homem. Nada foi mais difícil para mim que isso. Ainda hoje me sinto um pouco adúltera ao aparecer num evento social com alguém que não é o homem que me recebeu no altar.
Sentamos juntos e, ao lado do Paulo, senta Janine, uma colega com quem não tinha muita intimidade na época em que estudamos juntas.
– Olha a santinha da turma, apareceu com esse gato!
O sorriso dela era enorme. Aqueles olhos verdes, eternamente maliciosos, cintilaram. Não sei o que dizer. Aquele olhar, aquele verde=amarelado, tem algo animalesco, primitivo. Viro para a minha esquerda, fugindo daqueles olhos. Não conheço a pessoa aí sentada, deve ser acompanhante de alguém. Por sorte, essa mulher desconhecida está ansiosa por conversar.
– Ai, que coisa linda essa turma se reencontrar assim! Esses encontros acontecem todo ano? E faz quanto tempo? Você veio a todos? O Antônio só veio nesse, por insistência minha.
Vou tentando responder a saraivada de perguntas, enquanto percebo que Paulo, praticamente virado de costas pra mim, conversa animadamente com Janine. Infelizmente, não consigo acompanhar a conversa, devido a verborragia da esposa do Antônio, que continua a fazer perguntas:
– Então você é separada? Há quanto tempo? Tem filhos? Você e seu ex-marido se dão bem?
Vou tentando responder e escutar a conversa ao mesmo tempo, mas capto palavras soltas da Janine. Com o Paulo praticamente de costas pra mim, não escuto o que ele diz. Ouço “santinha”, “muito mimada”, “esnobava todo mundo”… Aiaiai. Começo a achar que sou o tema dessa conversa.
Num momento em que minha interrogadora para pra tomar um gole de sua bebida, viro para Paulo e seguro seu braço. Ele vira, rindo, com os olhos úmidos.
– Essa sua amiga é muito divertida. E tem histórias ótimas do tempo de vocês.
Dou um sorriso, o melhor que posso. Essa mulher nunca foi próxima de mim, não sabe nada da minha vida. O que ela teria pra contar?
O resto da noite passa como um pesadelo indefinido. Vou respondendo às perguntas da esposa do Antônio (qual será o nome dela?) e ouvindo o papo animadíssimo à minha direita. Tenho vontade de virar e participar da conversa, mas não sei como.
Chega a hora das despedidas. Vejo o abraço caloroso que o Paulo dá em Janine. Vejo o guardanapo dobrado que ela põe na mão dele enquanto fala a seu ouvido e ele ri. Vejo os olhos dele mergulharem no mar verde dos dela e lá permanecerem por vários segundos. Sinto o braço dele sobre meu ombro, sem calor nenhum. Ele anda ao meu lado, mas olha pra trás.
Talvez ele venha ao encontro do ano que vem, enfim.

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Denise Accurso

E-mail: deaccurso@gmail.com

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