Denise Accurso
– Oi, Rose. Há quanto tempo, guria!
– Pois é. Desde a nossa festa de um ano de formatura. O que tu andas fazendo?
– O mesmo de sempre, né. Trabalhando muito, naqueles horários loucos que tu conheces bem.
– Conhecia, Juju. Conhecia. Não conheço mais.
– Como assim?
– Larguei a enfermagem. Abri uma loja de bijuterias no shopping aqui perto. Está até indo bem… Eu uso quase todo o estoque!
– Não posso acreditar. Logo tu, a melhor aluna, a mais CDF de todas, agora desistiu da enfermagem. Foi a pandemia?
– Não mesmo. Quando veio a pandemia eu já era lojista. Vamos ali no shopping, se estiver tudo tranquilo na loja a gente toma um café e eu te conto a história toda. Que achas? Estás muito ocupada?
– Pra falar a verdade, estou mesmo indo ao shopping comprar umas coisas. Se der, claro que quero. O café e a história, óbvio!
A loja está tranquila. A funcionária compromete-se a chamar a Rose caso o movimento aumente. Assim, as amigas vão tomar um café.
– Que legal a tua loja, Rose, muito legal mesmo! Gostei. Parabéns!
– Obrigada. O comércio está no meu sangue. Meu pai foi um dos fundadores da Lartudo, tu conheces? Uma rede de lojas de ferragem, hoje virou uma franquia.
– Óbvio, conheço, sim, tem em tudo quanto é canto. Mas…
Seu rosto aparentava confusão.
– Quando a gente se conheceu, o pai não tinha mais nada a ver com a Lartudo. O sócio o sacaneou de uma forma que ele saiu sem nada. Não lembro de tudo, lembro que nos mudamos de casa, de colégio, o astral ficou péssimo, o pai passou a chorar e beber muito. A mãe me contou, em segredo, que o sócio havia roubado tudo de nós.
– Tu nunca contaste nada disso!
– Pois é. Estou contando agora porque tem ligação com eu desistir da carreira de enfermeira. Escolhi a enfermagem um pouco inspirada no pai, que ficou super-doente, teve câncer, tudo muito difícil… A gente sem dinheiro, sem plano de saúde, o pai e a mãe cheios de amargura. A mãe ainda foi falar com o tal sócio, pedir ajuda, um plano de saúde, alguma coisa. Não deu em nada. Eu acompanhei ele muito nas quimios e nas rádios, comecei a me encantar com aquele universo em que pessoas ajudavam outras, mas isso eu tenho certeza de que já te contei. Agora vem a parte difícil.
Rose para e respira fundo.
– Acho que foi Deus que te botou no meu caminho hoje. O que vou te contar, nunca contei pra ninguém. Precisava ser tu, alguém que entende toda a dificuldade mas também toda a gratificação da minha antiga profissão. Ninguém sabe. Nem minha mãe. Ninguém!
– Nossa! Agora estou curiosa.
– Faz quase cinco anos, estou atendendo na UTI, feliz da vida com meu trabalho, uma equipe maravilhosa. Eis que chega um acidentado em estado grave. Fraturas, concussão, o pacote completo. Exigindo cuidados e monitoramento constante. Adivinha quem era?
– Não! Tu não vais me dizer que…
– Era. O ex-sócio do meu pai, o canalha que acabou com ele. O alcoolismo e o câncer que levou o pai, tudo culpa dele. E agora ele está ali, indefeso, sob meus cuidados. Eu não precisava fazer muita coisa, era só deixar de dar algum remédio, desligar algum aparelho… Muito fácil.
– Mas tu não és assim, Rose. Essa não és tu.
– Até esse dia, eu também achava isso. Tinha muita fé em mim, na minha bondade, na minha humanidade. Vou te dizer uma coisa, amiga. A gente não se conhece, de jeito nenhum. De repente, eu tinha todo o poder de vingar quem tanto mal tinha feito. O cara era um canalha completo. Deve ter ferrado muita gente na vida. Vai dizer que o mundo não fica melhor com um canalha a menos? Era tão fácil… Primeiro suprimi um pouco os sedativos. Ver ele gemendo de dor… Tu não faz ideia de quanto foi bom!
A outra a olhava com pavor nos olhos. Havia medo e horror em sua expressão.
Vendo esse olhar, Rose riu. Curvou-se e pegou a mão da amiga.
– Eu não fiz mais nada. Calma! Não fiz, mas passei a noite em sofrimento. Algo dentro de mim dizia que ele não merecia viver, que eu era um instrumento do Universo para eliminar um verme. Foi horrível, amiga. Cheguei muito perto de matar o cretino. Mas resisti.
Respira de novo.
– Eu nunca achei que seria capaz de pensar naquelas coisas. Fiquei muito chocada comigo mesma. Percebi que não estava pronta para lidar com esse tipo de… poder. Aquela foi a pior noite da minha vida. Na manhã seguinte dei o aviso. Agora estou aqui. O pior dano que posso causar é vender um colar enorme para uma mulher mignon.