O que não sei


Denise Accurso

Minha vida é mesmo uma bosta. Enquanto eu morar aqui vai ser assim. Preciso poder sair de uma vez. A única coisa boa dessa casa acabou. Não sobrou nada. Nada!
Aposto que um dos dois tem algo a ver com isso. Ou o Tiago ou a Valentina. Meus ricos maninhos. Nem sei quem é o pior. O Tiago, todo bom moço, exibido, tem que ser sempre o melhor em tudo. Eu, a vida inteira ouvindo: “ tu és irmão do Tiago? Como ele é inteligente/bonito/simpático/bem-humorado”. Só faltava dizerem: tudo que tu não é. Bem no começo, os professores, vendo que eu tinha mais dificuldade, sugeriam que eu pedisse ajuda a ele. Eu até tentei. Ele ficava ali um ou dois minutos, depois me dava um tapa na cabeça e dizia que eu era burro mesmo. Quando o pai e a mãe chegavam tinha o desplante de dizer que tinha tentado me ajudar! Eu logo desisti de contar com ele pra qualquer coisa. No colégio, se eu tentasse chegar perto, ele vinha dizer baixinho no meu ouvido pra eu cair fora e me dava um beliscão. Não que eu tivesse tentado muito chegar perto dele. Pra mim, quanto mais longe do Tiago, melhor.
Quando nasceu a Valentina, eu até fiquei feliz. Achei que eu e ela poderíamos ser amigos. Só que a boba logo caiu nas artimanhas do Tiago, que se aproveitava dela pra parecer ainda mais bonzinho! A burra nem percebe que o cara usa ela pra impressionar as gurias e os amigos, que na verdade ele está cagando pra ela. Ela entrou pra seita dos adoradores do Tiago. Anda por aí, pela casa, espionando, escutando as conversas, xeretando tudo. Quase tão chata quanto o Tiago. Uma vez eu a peguei ouvindo minha conversa com a Graça e dei um corridão nela.
O pai e a mãe vivem querendo que eu imite mais meu irmão mais velho. Que eu estude como ele. Tenha amigos como ele. Seja gentil como ele. Sorria pras pessoas como ele. Enfim, queriam que eu fosse um clone do filho perfeito. Mas eu não sou e não quero ser.
Foi só quando ela chegou que tudo melhorou. A Maria da Graça – nome melhor pra ela não tem. Pela primeira vez ficar em casa se tornou suportável. Uma pessoa de verdade, inteligente, batalhadora. Não se deixou enganar pelo jeito do Tiago. Ficamos amigos logo de cara.
Foi um tempo feliz. Eu saía da aula com pressa de chegar em casa, sabendo que ela estaria lá e me receberia com um sorriso. “Como foi a aula, Bernardo? E a prova de matemática, foi mais fácil que a outra?” Sempre interessada nas minhas coisas. Quando eu contava pra ela meus planos de fazer dezoito anos e cair fora, ela não debochava nem me olhava com ar de quem não acredita. Ao contrário, dizia que eu fazia muito bem, que aquele ambiente era “tóxico” pra mim. Nunca tinha sequer imaginado isso, apenas queria ir embora para um lugar em que ninguém me julgasse, ninguém esperasse nada de mim. Não achava que havia algum problema na minha casa, achava que o problema era eu. Foi ela que me fez pensar diferente, que eu não merecia aquilo, ser sempre tratado como o filho inferior.
Gente, como ela me entendia! As tardes conversando com ela, ouvindo as histórias dela, a família, os planos… Falando do pai, da mãe, da Tina, do Tiago… Tardes inesquecíveis. Ela era muito observadora. Várias vezes disse que me achava muito inteligente, maduro pra minha idade. E aquilo parecia sincero.
Ela era bonita, também, de um jeito só dela. Tinha um cheirinho bom, mistura de desodorante e detergente de pinho. O cabelo ficava preso, mas na hora de ir embora ela soltava e era lindo! Uma nuvem de cachos que descia pelo pescoço. Eu gostava de ver, de ouvir, de cheirar. Estar perto dela fazia tudo ficar simples. Pensava nela na aula. Pensava nela de noite, antes de dormir. Queria sonhar com ela.
Eu devia ter adivinhado que alguma coisa ia acontecer e estragar tudo. Não tinha como eu ser feliz nessa casa. Hoje o pai mandou ela embora. Disse pra nós que o dinheiro das compras tinha sumido e que isso ele não podia admitir. E que certeza é essa de que foi a Graça? Pode ter sido qualquer um. Eu tenho certeza que não foi a Graça. Deve ter sido o Tiago ou a Tina. Mas nem o pai nem a mãe jamais vão aceitar essa verdade.
Então tá. Vou pedir uma reunião familiar e dizer que eu peguei o dinheiro. Quem sabe chamam ela de volta? Se não chamarem, tenho que aguentar longos 19 meses até eu fazer 18 anos.

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Denise Accurso

E-mail: deaccurso@gmail.com

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